quarta-feira, 16 de junho de 2010

O governo dos bancos - Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa

por Serge Halimi

A insolência dos especuladores suscita uma viva oposição popular e força os governos a distanciarem‐se, pelo menos um pouco, do poder financeiro. A 20 de Maio, o presidente Barack Obama designou como «hordas de lobistas» os banqueiros que se opunham ao projecto de regulação de Wall Street. Será que quem assina os cheques vai continuar a escrever as leis?

A 10 de Maio de 2010, os detentores de títulos do banco Société Générale, tranquilizados por uma nova injecção de 750 mil milhões de euros na fornalha da especulação, registaram ganhos de 23,89%. No mesmo dia, o presidente francês Nicolas Sarkozy anunciou que, por necessidades de rigor orçamental, iria ser cancelada a ajuda excepcional de 150 euros às famílias em dificuldades. Crise financeira após crise financeira, vai crescendo a convicção de que o poder político alinha a sua conduta pelas vontades dos accionistas. Periodicamente, porque a democracia assim exige, os eleitos convocam a população a privilegiar partidos que os «mercados» pré‐seleccionaram em função da sua inocuidade.

A suspeita de prevaricação mina, a pouco e pouco, o crédito da invocação do bem público. Quando Barack Obama repreende o banco Goldan Sachs, a fim de melhor justificar medidas de regulação financeira, os republicanos imediatamente difundem um spot [1] que recapitula a lista das doações que o presidente e os seus amigos políticos receberam da «Banca» nas eleições de 2008: «Democratas: 4,5 milhões de dólares. Republicanos: 1,5 milhões de dólares. Os políticos atacam a indústria financeira, mas aceitam os milhões pagos por Wall Street». Quando os conservadores britânicos, invocando a preocupação de proteger o orçamento das famílias pobres, se opõem à instauração de um preço mínimo para o álcool, os trabalhistas respondem que eles estão, isso sim, a querer agradar aos proprietários dos supermercados, que se opõem a tal medida desde que fizeram do preço do álcool um produto chamativo para adolescentes encantados com o facto de a cerveja poder custar menos do que a água. Por fim, quando Sarkozy elimina a publicidade nos canais públicos, toda a gente fareja o lucro que as televisões privadas dirigidas pelos seus amigos (Vincent Bolloré, Martin Bouygues, etc.) vão retirar de uma situação que os liberta de qualquer concorrência na partilha dos produtos dos anunciantes.

Este género de suspeita tem uma longa história. Mas muitas realidades que deveriam escandalizar, mas às quais as pessoas se resignam, acabam por ser minoradas por um «sempre foi assim». Em 1887, o genro do presidente francês Jules Grévy tirava seguramente partido da parentela do Eliseu para o negócio das condecorações; no início do século passado, a Standard Oil ditava as suas vontades a muitos governadores dos Estados Unidos. Por fim, no âmbito da ditadura do sistema financeiro, desde 1924 que se fala do «plebiscito diário dos detentores de títulos» − os credores da dívida pública de então −, também chamados «muro de dinheiro». Com o passar do tempo, no entanto, várias leis tinham regulado o papel do capital na vida política, mesmo nos Estados Unidos: durante a «era progressista» (1880‐1920) ou depois no fim do escândalo de Watergate (1974), mas sempre no seguimento de mobilizações políticas. Quanto ao «muro de dinheiro», em França o sistema financeiro foi colocado sob tutela a seguir à Libertação. Em suma, «sempre tinha sido assim», mas também podia mudar.

E depois volta a mudar... mas no outro sentido. A partir de 30 de Janeiro de 1976, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos invalidou várias disposições fundamentais que limitavam o papel do dinheiro na política e que haviam sido votadas pelo Congresso (sentença Buckley contra Valeo). O motivo invocado pelos juízes foi o seguinte: «A liberdade de expressão não pode depender da capacidade financeira que um indivíduo tenha para se envolver no debate público». Dito de outro modo, regular os gastos é asfixiar a expressão... Em Janeiro de 2010, esta sentença foi alargada ao ponto de autorizar as empresas a gastar o que elas quisessem para promover (ou combater) um candidato. Noutras paragens, há vinte anos que a derrapagem venal voltou a ser sistemática entre os antigos apparatchiks soviéticos metamorfoseados em oligarcas industriais, entre os patrões chineses que ocupam um lugar destacado no Partido Comunista, entre os chefes do executivo, ministros e deputados europeus que preparam, à americana, a sua reconversão no «sector privado», ou entre um clero iraniano e entre militares paquistaneses seduzidos pelos negócios [2]. Esta derrapagem veio inflectir a vida política do planeta.

Na Primavera de 1996, no fim de um primeiro mandato muito medíocre, o presidente Bill Clinton estava a preparar a campanha para ser reeleito. Precisava de dinheiro. Para o arranjar, teve a ideia de propor aos mais generosos doadores do seu partido uma noite na Casa Branca, por exemplo no «quarto de Lincoln». Uma vez que ver‐se associado ao sono do «grande emancipador» não estava ao alcance das bolsas mais pequenas, nem era necessariamente a fantasia das maiores, foram leiloadas outras guloseimas. Uma delas foi «tomar um café» na Casa Branca com o presidente dos Estados Unidos. Os potenciais investidores do Partido Democrata encontraram‐se, portanto, às fornadas com membros do executivo encarregados de regular a sua actividade. Lanny Davis, porta‐voz do presidente Clinton, explicou ingenuamente que se tratava de «permitir que os membros das agências de regulação conhecessem melhor as questões da respectiva indústria» [3]. Um destes «cafés de trabalho» pode ter custado alguns biliões de dólares à economia mundial, favorecido o disparo da dívida dos Estados e provocado a perda de dezenas de milhões de empregos.

A 13 de Maio de 1996, portanto, alguns dos principais banqueiros dos Estados Unidos foram recebidos durante noventa minutos na Casa Branca pelos principais membros da administração. Ao lado do presidente Clinton, o ministro das Finanças, Robert Rubin, o seu adjunto encarregado das questões monetárias, John Hawke, e o responsável pela regulação dos bancos, Eugene Ludwig. Por um acaso certamente providencial, o tesoureiro do Partido Democrata, Marvin Rosen, também participou na reunião. Segundo o porta‐voz de Ludwig, «os banqueiros falaram sobre a futura legislação, incluindo ideias que permitirão acabar com a barreira que separa os bancos de outras instituições financeiras».

O New Deal, ensinado pela bancarrota financeira de 1929, tinha proibido os bancos de depósitos de arriscarem de forma imprevidente o dinheiro dos seus clientes, o que a seguir obrigava o Estado a salvar estas instituições por temer que a sua eventual falência provocasse a ruína dos seus numerosos depositantes. Esta disposição (Lei Glass‐Steagall), assinada pelo presidente Franklin Roosevelt em 1933, e ainda em vigor em 1996, desagradava imenso aos banqueiros, desejosos de lucrar também com os milagres da «nova economia». O «café de trabalho» visava recordar esse desagrado ao chefe do executivo americano, no momento em que ele estava a tentar que os bancos lhe financiassem a reeleição.

Algumas semanas depois do encontro, vários despachos anunciaram que o Ministério das Finanças ia enviar ao Congresso uma panóplia legislativa «pondo em causa as regras bancárias estabelecidas seis décadas antes, o que permitiria que os bancos se lançassem em força nos seguros e na banca de negócios e de mercado». Toda a gente sabe o que aconteceu a seguir. A abolição da Lei Glass‐Steagall foi assinada em 1999 por um presidente Clinton reeleito três anos antes, em parte graças ao tesouro acumulado na guerra eleitoral [4]. A medida atiçou a orgia especulativa da década de 2000 (sofisticação cada vez maior dos produtos financeiros, do tipo dos créditos imobiliários subprime, etc.) e precipitou o colapso económico de Setembro de 2008.

Na verdade, o «café de trabalho» de 1996 (ocorreram 103 do mesmo género no mesmo período e no mesmo local) apenas veio confirmar o peso que já vinham tendo os interesses do sector financeiro. Porque foi um Congresso de maioria republicana que enterrou a Lei Glass‐Steagall, em conformidade com a sua ideologia liberal e com os desejos dos seus «mecenas» − os parlamentares republicanos eram também beneficiados com dólares pelos bancos. Quanto à administração Clinton, com ou sem «café de trabalho», não terá resistido durante muito tempo às preferências de Wall Street, até porque o seu ministro das Finanças, Robert Rubin, tinha sido dirigente do Goldman Sachs. Tal como, aliás, Henry Paulson, que chefiava o Tesouro americano na altura do colapso de Setembro de 2008. Depois de ter deixado trespassar o Bear Stearns e o Merryl Lynch, dois concorrentes do Goldman Sachs, Paulson salvou o American International Group (AIG), um segurador cuja falência teria atingido o maior credor da instituição, que era o Goldman Sachs.

Porque é que uma população que não é maioritariamente composta por ricos aceita que os seus eleitos satisfaçam prioritariamente as exigências dos industriais, dos advogados de negócios ou dos banqueiros, a tal ponto que a política acaba por consolidar as relações de força económicas em vez de lhes opor a legitimidade democrática? Porque é que estes ricos, quando são eles próprios eleitos, se sentem autorizados a exibir a sua fortuna? E a clamar que o interesse geral impõe a satisfação dos interesses particulares das classes privilegiadas, as únicas dotadas do poder de fazer (investimentos) ou de impedir (deslocalizações), e que têm por isso de ser constantemente seduzidas («tranquilizar os mercados») ou conservadas (lógica do «escudo fiscal»)?

Estas questões fazem pensar no caso de Itália (ler o artigo de Francesca Lancini na edição de Junho). Neste país, um dos homens mais ricos do planeta não se juntou a um partido na esperança de o influenciar, mas criou o seu próprio partido, a Forza Italia, para defender os interesses dos seus negócios. A 23 de Novembro de 2009, o jornal La Repubblica publicou aliás a lista das dezoito leis que favoreceram o império comercial de Silvio Berlusconi, desde 1994, ou que lhe permitiram escapar a processos judiciários. Por seu lado, o ministro da Justiça da Costa Rica, Francisco Dall’Anase, alerta já para uma etapa ulterior desta evolução, a que passará por certos países colocarem o Estado ao serviço, já não apenas dos bancos, mas de grupos criminosos: «Os cartéis da droga vão apoderar‐se dos partidos políticos, financiar campanhas eleitorais e, a seguir, controlar o executivo» [5].

Na prática, que impacto tem a (nova) revelação do La Repubblica no destino eleitoral da direita italiana? A julgar pelo êxito eleitoral que este registou nas eleições regionais de Março passado, nenhum. Tudo se passa como se a relaxação comum da moral pública tivesse «intoxicado» populações doravante resignadas à corrupção da vida política. Porque é que as populações haviam de se indignar quando os eleitos zelam permanentemente pela satisfação dos novos oligarcas − ou por se lhes juntarem no topo da pirâmide dos rendimentos? «Os pobres não fazem doações políticas», observava com muita razão o antigo candidato republicano à presidência, John McCain. Desde que deixou de ser senador, este tornou‐se lobista da indústria financeira.
Pessoas comuns, fundos de pensões e sistema financeiro

No mês seguinte a ter abandonado a Casa Branca, Bill Clinton ganhou tanto dinheiro como havia ganho durante os anteriores cinquenta e três anos de vida. O Goldman Sachs pagou‐lhe 650 000 dólares por quatro discursos. Um outro, proferido em França, rendeu‐lhe 250 000 dólares; desta vez, foi o Citigroup que pagou. No último ano do mandato de Clinton, o casal havia declarado 357 000 dólares de rendimentos; entre 2001 e 2007 totalizou 109 milhões de dólares. Doravante, a celebridade e os contactos adquiridos durante uma carreira política rendem sobretudo depois de essa carreira ter terminado. Os lugares de administrador no privado ou de consultor de bancos substituem com vantagem um mandato popular que acaba de chegar ao fim. Ora, como governar é prever...

Mas a passagem do público para o privado não se explica apenas pela exigência de passar a ser membro vitalício da oligarquia. A empresa privada, as instituições financeiras internacionais e as organizações não governamentais ligadas às multinacionais tornaram‐se, por vezes mais do que o Estado, lugares de poder e de hegemonia intelectual. Em França, o prestígio do sector financeiro e o desejo de construir um futuro dourado desviaram muitos antigos alunos da Escola Nacional de Administração (ENA), da Escola Normal Superior ou do Politécnico da sua vocação de servidores do bem público. Alain Juppé, antigo membro das duas escolas e antigo primeiro‐ministro confidenciou ter sentido uma tentação semelhante: «Ficámos todos fascinados, incluindo, perdão, a comunicação social. Os “golden boys”, aquilo era extraordinário! Estes jovens que chegavam a Londres e que estavam ali à frente das máquinas a transferir milhares de milhões de dólares em apenas alguns instantes, que ganhavam centenas de milhões de euros todos os meses, toda a gente estava fascinada! (...) Não seria completamente honesto se negasse que até eu, de vez em quando, dizia a mim mesmo: Ora, se eu tivesse feito aquilo, talvez hoje estivesse numa situação diferente» [6].

Em contrapartida, Yves Galland, antigo ministro francês do Comércio que se tornou presidente da Boeing France, uma empresa concorrente da Airbus, nem balançou. O mesmo pode ser dito de Clara Gaymard, mulher de Hervé Gaymard, antigo ministro da Economia, Finanças e Indústria, que depois de ter sido funcionária pública em Bercy, e a seguir embaixadora itinerante delegada para os investimentos internacionais, se tornou presidente da General Electric France. Também Christine Albanel, que durante três anos ocupou o Ministério da Cultura e da Comunicação, está de consciência tranquila. Desde Abril de 2010, continua a dirigir a comunicação... mas agora da France Télécom.

Metade dos antigos senadores americanos tornam‐se lobistas, muitas vezes ao serviço das empresas que regulamentaram. Foi o que aconteceu também com 283 ex‐membros da administração Clinton e 310 antigos elementos da administração Bush. Nos Estados Unidos, o volume de negócios anual dos grupos de pressão deve aproximar‐se dos 8 mil milhões de dólares por ano. É uma soma enorme, mas com um rendimento excepcional! Em 2003, por exemplo, as taxas de tributação dos lucros realizados no estrangeiro pelo Citigroup, o JP Morgan Chase, o Morgan Stanley e o Merrill Lynch caiu de 35% para 5,25%. Factura da acção dos lóbis: 8,5 milhões de dólares. Vantagem fiscal: 2 mil milhões de dólares. Nome da disposição em questão: «Lei de criação de empregos americanos» [7]... «Nas sociedades modernas», resume Alain Minc, antigo aluno da ENA, conselheiro (a título gracioso) de Nicolas Sarkozy e (assalariado) de vários grandes patrões franceses, «o interesse geral pode ser servido noutros lugares que não no Estado, pode ser servido nas empresas» [8]. O interesse geral − está tudo dito.

Esta atracção pelas «empresas» (e respectivas remunerações) não deixou de fazer estragos à esquerda. «Uma alta burguesia renovou‐se», explicava em 2006 François Hollande, então primeiro secretário do partido Socialista francês, «na altura em que a esquerda estava a assumir responsabilidades, em 1981. (...) Foi o aparelho de Estado que forneceu ao capitalismo os seus novos dirigentes. (...) Vindos de uma cultura de serviço público, acederam ao estatuto de novos‐ricos, falando como donos e senhores aos políticos que os haviam nomeado» [9]. E que a seguir foram tentados a segui‐los.

O mal causado não lhes pareceu tão grande assim porque, através dos fundos de pensões e dos investimentos, uma parte crescente da população associou o seu futuro, por vezes sem o querer, ao futuro do sector financeiro. Doravante pode, portanto, defender‐se os bancos e a Bolsa fingindo preocupação com a viúva arruinada, com o empregado que comprou acções para completar o salário ou garantir a aposentação. Em 2004, o antigo presidente George W. Bush encostou a campanha da sua reeleição a esta «classe de investidores». O Wall Street Journal explicava: «Quanto mais os eleitores são accionistas, mais apoiam as políticas económicas liberais associadas aos republicanos. (...) 58% dos americanos têm um investimento directo ou indirecto nos mercados financeiros, contra 44% há seis anos. Ora, a todos os níveis de rendimentos, os investidores directos são mais susceptíveis de se declararem republicanos do que os não‐investidores» [10]. Percebe‐se que Bush tenha sonhado privatizar as aposentações.

«Subjugados ao sector financeiro desde há duas décadas, os governos só se virarão por si próprios contra ele se este sector o agredir directamente de tal forma que lhes pareça intolerável», anunciava em Maio o economista Frédéric Lordon [11]. O alcance das medidas que a Alemanha, a França, os Estados Unidos e o G20 venham a tomar nas próximas semanas contra a especulação irá dizer‐nos se a humilhação quotidiana que «os mercados» infligem aos Estados e a fúria popular que o cinismo dos bancos suscita terão despertado nos governos, cansados de serem tomados por criados, a pouca dignidade que lhes resta.

sexta-feira 4 de Junho de 2010
Notas

[1] Vídeo disponível em www.monde‐diplomatique.fr/19172.

[2] Ler «O dinheiro», «A resistível ascensão dos pasdarãs» e «Os militares apoderam‐se das riquezas do Paquistão», Le Monde diplomatique − edição portuguesa, respectivamente em Janeiro de 2009, Fevereiro de 2010 e Janeiro de 2008.

[3] Esta citação, bem como as seguintes, são retiradas de «Guess Who’s Coming for Coffee?», The Washington Post, National Weekly Edition, 3 de Fevereiro de 1997.

[4] Ler Thomas Ferguson, «Le Trésor de guerre du président Clinton», Le Monde diplomatique, Agosto de 1996.

[5] Citado pela London Review of Books, Londres, 25 de Fevereiro de 2010.

[6] «Parlons Net», France Info, 27 de Março de 2009.

[7] Dan Eggen, «Lobbying Pays», The Washington Post, 12 de Abril de 2009.

[8] France Inter, 14 de Abril de 2010.

[9] François Hollande, Devoirs de vérité, Stock, Paris, 2006, pp. 159‐161.

[10] Claudia Deane e Dan Balz, «“Investor Class” Gains Political Clout», The Wall Street Journal Europe, 28 de Outubro de 2003.

[11] La pompe à phynance, http://blog.mondediplo.net, 7 de Maio de 2010.

Fonte: http://pt.mondediplo.com/