terça-feira, 9 de setembro de 2008

Greenspan e O Mito do Crente Sincero

Aquele estudante alto de pós-gradução, vindo da Suécia em visita aos EUA, não se satisfazia com um dito brincalhão.

Ele queria respostas. "Eles não podem ser motivados só pela cobiça e pelo poder. Devem ser motivados por alguma coisa mais elevada. O que?"
Não despreze o poder e a cobiça, tentei sugerir-lhe — construíram impérios. Mas ele queria mais:

"E quanto a uma crença em que estão a construir um mundo melhor?" Desde que principiei o circuito de promoção do meu livro The Shock Doctrine tenho tido um certo número de trocas de ideias como esta, revolvendo em torno da mesma questão básica: Quando líderes políticos de extrema-direita e seus conselheiros aplicam brutais terapias económicas de choque será que eles acreditam honestamente que os efeitos do gotejamento (trickle-down) construirão sociedades equitativas – ou estarão eles apenas a criar deliberadamente condições para mais privatizações? Dito cruamente: Será que nas últimas três décadas o mundo foi transformado mais por ideologias sublimes do que por cobiças rasteiras?

Uma resposta definitiva exigiria ler as mentes de homens como Dick Cheney e Paul Bremer, o que prefiro evitar. A ideologia em causa assevera que o auto-interesse é o motor que conduzi a sociedade às suas maiores alturas. Será a busca do seu próprio auto-interesse (e a dos doadores de suas campanhas) compatível com aquela filosofia? Aqui está a maravilha. Eles não têm de escolher. Infelizmente, isto raramente satisfaz estudantes graduados à procura de um significado mais profundo. Por felicidade agora tenho uma nova escapatória: citar Alan Greenspan.

A sua autobiografia, The Age of Turbulence, [1] tem sido apregoada como a resolução de um mistério. O homem que mordeu a língua durante dezoito anos como responsável do Federal Reserve ia por fim contar ao mundo aquilo em que realmente acreditava. E Greenspan havia entregue, utilizando seu livro e a publicidade que o cercou como uma plataforma para a sua ideologia "libertário-republicana", ralhando com George W. Bush por abandonar a cruzada por governo pequeno e revelando que se tornara um elaborador de políticas por pensar que podia avançar a sua ideologia radical mais efectivamente "de dentro, ao invés de ser um panfletário crítico" a actuar nas margens. Mas o mais interessante acerca da estória de Greenspan é o que ela revela acerca do ambíguo papel das ideias na cruzada do livre mercado. Uma vez que Greenspan é talvez o mais poderoso ideólogo vivo do mercado livre, a nível mundial, é significativo que o seu compromisso para com a ideologia pareça fraco e superficial. Um compromisso que parece menos o de um crente sincero e assemelha-se mais a uma conveniente estória de fachada.

Grande parte do debate em torno do legado de Greenspan girou em torno da questão da hipocrisia, de um homem a pregar o laissez-faire que repetidamente interveio no mercado para salvar os jogadores mais ricos. A economia legada por Greenspan dificilmente se ajusta à definição de um mercado libertário mas parece muito como outro fenómeno descrito no seu livro: "Quando líderes de um governo rotineiramente procuram indivíduos do sector privado ou dos negócios e, em troca de apoio político, concedem-lhes favores, diz-se que a sociedade está nas garras do 'capitalismo do compadrio' ('crony capitalism'). Ele estava a falar da Indonésia sob Suharto, mas a minha mente foi directamente para o Iraque sob a Halliburton. Greenspan actualmente está a advertir o mundo acerca de um perigoso retrocesso que ameaça o capitalismo. Aparentemente, isto nada tem a ver com as políticas de negligente desregulamentação que foram a sua marca característica. Nada a ver com salários estagnados devido ao livre comércio e a sindicatos enfraquecidos, nem com pensões perdidas para a Enron ou no crash das dot-com, ou lares arrestados na crise das hipotecas subprime. Segundo Greenspan, a desigualdade desenfreada é provocada por péssimas escolas secundárias (o que também nada tem a ver com a sua ideologia de guerra à esfera pública). Participei de um debate com Greenspan em Democracy Now! e fiquei impressionada por verificar que este homem que prega a doutrina da responsabilidade pessoal recusa-se a assumir qualquer responsabilidade que seja.

Mas contradições ideológicas são relevantes apenas se Greenspan for um crente sincero. Não estou convencida. Greenspan escreve que quando estudante não tinha interesse em grandes ideias. Ao contrário dos seus companheiros de classe que eram influenciados pelo keynesianismo com a sua promessa de construir um mundo melhor, Greenspan era simplesmente bom em matemática. Ele começou a fazer investigação para corporações poderosas; era lucrativo, mas Greenspan não proclamava estar a dar uma alta contribuição social.

Então ele descobriu Ayn Rand. "O que ela fez... foi fazer-me pensar porque o capitalismo é não apenas eficiente e prático como também moral", disse ele em 1974. As ideias de Rand acerca da "utopia da cobiça" permitiram a Greenspan que continuasse a fazer aquilo que fazia mas infundiu ao seu serviço corporativo um novo e poderoso sentido de missão. Naturalmente, o outro lado da moeda disto é a cruel indiferença para com aqueles deixados para trás. "Propósito firme e racionalidade alcançam alegria e completude", escreveu Greenspan como zeloso recém convertido. "Parasitas que persistentemente evitam tanto um propósito como uma razão perecem como deveriam". Foi com esta mentalidade que tanto o ajudou que ele apoiou a terapia de choque na Rússia (72 milhões empobrecidos) e no Extremo Oriente após a crise económica de 1997 (24 milhões lançados ao desemprego)?

Rand tem desempenhado este papel de potenciador da cobiça para incontáveis discípulos. Segundo o New York Times, Atlas Shrugged, sua novela que termina com o herói a traçar um sinal de dólar no ar tal como uma bênção, apresenta-se como "um dos mais influentes livros de negócios já escritos". Uma vez que Rand está simplesmente a condensar Adam Smith, sua influência sobre homens como Greenspan sugere uma possibilidade interessante. Talvez o verdadeiro propósito de toda a literatura da teoria do gotejamento seja libertar empreendedores para que prossigam o seu mais estreito interesse enquanto afirmam altruísticos motivos globais – não tanto como uma filosofia económica mas como uma elaborada racionalização retroactiva.

O que Greenspan nos ensinou é que afinal de contas o gotejamento não é realmente uma ideologia. É antes como o amigo que nos telefona após algum excesso embaraçoso e nos diz, "Não se aflija: você merece". [1]

A era da turbulência , Editorial Presença, Lisboa, 2007, 572 pgs., ISBN: 9789722338295


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