Se a demagogia pagasse imposto, o novo líder do PSD deveria começar já a ser taxado!
Passos Coelho, no seu discurso de encerramento do Congresso PSD, resolveu fazer uma referência que quase puxava às lágrimas sobre a profunda injustiça da falta de apoio do Estado às instituições particulares de solidariedade social. Por detrás da comoção e vibração encenadas nesta sua parte do discurso, e do comovente apoio ao terceiro sector (a economia social), estava o projecto há muito desejado pela direita e agora retomado em força pelo novo líder do PSD da famigerada "liberdade de escolha" visando de facto o enfraquecimento das responsabilidades do Estado na sustentação dos serviços públicos na protecção social, na educação e na saúde, para os converter em serviços residuais, degradados e de tipo assistencialista.
Ou seja, a transferência dos recursos (leia-se os nossos impostos) para os privados, como se estes fossem depois abrir os colégios e os hospitais de luxo, gratuitamente, ao cidadão comum, e todos passássemos a viver num mundo melhor com a saúde, a educação e a protecção social convertidos em negócio e objecto de lucro . Sempre em nome duma estranha e propagandeada teoria, que ninguém até hoje demonstrou, de que os privados gerem melhor e a custos mais baixos os recursos disponíveis e que a corrupção é pública (como se os corruptores não fossem privados). Basta lembrarmo-nos da escandalosa gestão privada do Hospital Amadora-Sintra, ou da gestão fraudulenta de dois bancos privados - o BPN e o BPP - para os quais lestamente o Governo acorreu com os recursos públicos que nega aos desempregados, ao Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública, para percebermos a falácia de toda esta ofensiva ideológica, que procura explorar os estados de carência e as falhas dos serviços públicos.
O estudo agora publicado pela insuspeita Universidade Católica, e divulgado na comunicação social depois do discurso do líder do PSD, é o melhor desmentido das suas teorias. 59% das receitas das instituições sociais ligadas à Igreja Católica, dominantes no mundo das IPSS, provêm do Estado que as financia.
Significa o que acaba de ser dito a desvalorização do terceiro sector (a chamada economia social ou solidária) e do seu papel complementar do Estado na satisfação de variadas necessidades sociais? Não!
O que queremos afirmar é que não aceitamos que a economia social seja usada como mero cavalo de Tróia para, de facto, o bloco central de interesses nos impingir gato por lebre e usar a mesma lógica ruinosa para o Estado e o interesse público que têm significado as famigeradas parcerias público-privadas para estender o seu péssimo exemplo ao desinvestimento progressivo do Estado nos serviços públicos e à captura dos cidadãos pela rede de negócios privados, mais caros para si e para o Estado, porque haverá sempre uma coisa chama lucro que alguém quererá obter à custa da nossa saúde, da nossa educação e das nossas reformas. E se existe algo que estudos internacionais idóneos e comparativos confirmam, é a evidência empírica (ver por exemplo o World Work Report 2008 da OIT, organização mundial tripartida)
de que onde existem Estados Sociais mais robustos e com melhores serviços públicos, existem menores níveis de desigualdade social, mais bem-estar, mais coesão social e confiança nas instituições e mais qualidade na democracia. Tudo ao arrepio das receitas que os que nada aprenderam com a crise económico-financeira e que a causaram nos pretendem impingir com novas roupagens.
Numa coisa estaremos, todavia, em tese e na aparência, de acordo com o dirigente do PSD: é precisa uma separação clara do interesse público e do interesse privado. Só que o desejamos, como tem sublinhado Manuel Alegre, em nome do reforço de um "Estado estratega" e não pela sua conversão, como aspira a direita e espreitam os interesses económicos, num Estado dito
"regulador", de facto predador e capturado pelo capital privado.
Este debate sobre o papel estratégico do Estado, a sua relação com a economia e a valorização dos serviços públicos e a modernização e viabilização do Estado Social como adquirido civilizacional e não como algo a derreter na competição global, é hoje e cada vez mais uma componente decisiva, prioritária e urgente do debate de um programa alternativo das esquerdas, separador e clarificador de águas face ao discurso político dominante que nos reduz a peões a sacrificar no jogo do défice e da dívida. Pena foi que o debate iniciado pelas esquerdas na Aula Magna tenha ficado como um acto isolado e para benefício eleitoral imediato e não como ponto de partida para um movimento organizado, transversal e alargado de debate destas matérias pelos cidadãos. Nunca é tarde, porém, para começar ou recomeçar.
.
Henrique Sousa